martes, 6 de febrero de 2018

A PASSISTA E O TAXIDERMISTA



A PASSISTA E O TAXIDERMISTA

Quando criança, minha mãe me dizia que eu deveria acompanhá-la até aquele lugar.

Eu sentia uma mistura de terror e fascinação.

Agarrava forte em sua mão por medo de acabar perdido para sempre em meio aos corredores mal iluminados, esverdeados e sombrios daquela galeria.

Abria meus olhos atentos, pronto para devorar tudo. Sempre esperando ver algo que eu não devia e alimentando assim meus medos infantis que me acompanhariam sem querer em forma de pesadelos recorrentes atá a maturidade.

Na adolescência soube da história completa e então percebi que meu temor não era totalmente injustificado.
Aquela galeria do centro de São Paulo era atrelada a mais do que uma simples paúra injustificada.
Ela me remetia àquela parte da infância onde guardamos nosso pavor secreto de palhaços, sequestradores de crianças e canibais.

Essa história traz esse medo, mas tem também algo novo, como aquele desconforto que sentimos nas partes baixas, aquele das primeiras ejaculações silenciosas, ainda incompreensíveis e secas.
Essa história fala de Luís Caveira Preta e sua loja na última sala da galeria. Lugar esse onde eu sempre lançava um olhar de soslaio, escondido do olhar reprovador de minha mãe.

A loja do Caveira Preta ficava entre duas singelas lojas: a sapataria do Zé Velho e a de Dona Agá, uma idosa gorducha, dona de uma loja infantil.

De dentro da morosidade daquela esquina, do balcão do Caveira Preta se ouviam barulhos estranhos, estridentes solos de guitarras e intermináveis sons de metal.
Para mim, uma criança educada através de firmes condutas de moral e surras severas, a loja do Caveira Preta era o portal do inferno, o que aguçava ainda mais a minha curiosidade juvenil.

Todas essas explicações não fariam sentido algum se não fosse por um dia, quando uma doce menina chamada Sandra adentrou a galeria desenrolando suas pernas de causar vertigem numa cadência rítmica de quadril.

Sandra era sobrinha de Dona Márcia, uma das proprietárias do salão de cabeleireiro no primeiro andar.
Naquele dia Sandra estava à procura de algo mais do que os abraço fortes da tia e seus bons conselhos.
Sandra era passista de carnaval e estava atrás dos objetos de desejo de toda menina em sua posição.
Na frente da loja do Caveira Preta ficavam todas as plumagens e adereços que ajudariam a transformar em destaque qualquer mulher que tivesse um bom samba no pé.

Sandra tinha tudo para a posição. O contorno de suas curvas, a suavidade de sua pele, a escuridão ondulada de seus cabelos e os cílios espessos que delineavam seus olhos cor de mel chamavam atenção por onde ela passava.
Sempre encontramos uma forma poética de descrever quem nos aquece a alma. Como um menino desabrochando, teria feito de tudo para ter Sandra em meus braços.

Talvez não fosse bem assim, mas essa é a única maneira de seguir em frente com essa história.

Sandra foi até a loja para comprar plumas para seu traje. Após um ano de trabalho duro e muita poupança, buscava no brilho da fantasia a chance de ser destaque na escola a que pertencia.
Bastou um giro de corpo para que os olhos de Caveira Preta e Sandra se encontrassem.

Diz a lenda que foi amor à primeira vista. Algo que só é possível quando ainda não se tem 20 anos e o que corre nas veias faz o corpo ferver.
A febre e o amor são quase a mesma coisa.

O tempo passou e ninguém sabe direito como, mas a relação cresceu.

Sandra trabalhava de dia e costurava seu traje de carnaval à noite na loja do Caveira Preta.
Dizem que Dona Agá colocava música alta na tentativa de abafar o som e gemidos que vinham da loja ao lado, e também dizem que o velho Zé, ao contrário, usava um copo junto ao ouvido para ouvir melhor o barulho dos amantes através da parede.
Luís ensinou Sandra a curtir Led Zepellin e Sandra apresentou para ele o samba de raiz.
Era uma mistura de cuíca e guitarra que só o amor explica.
Na escola de samba Sandra chegava agarrada ao seu amor.
Beijos de língua que chamavam a atenção de todos, inclusive de desafetos.

Rose, que sempre havia sido a passista de destaque, era rainha.
Olhava agora com desdém esse desabrochar de Sandra.

Antes faltava à Sandra um sopro de calor.
Depois de Luís Caveira Preta, ela virou brasa e desabrochou.

Sua pele, seu sexo, suas curvas estavam no ponto certo. A competição entre Rose e Sandra seria feroz.

O tempo passou manso, entre feijoadas na casa de Sandra e churrascos com a turma de Luís, e assim passou-se o ano e, quando menos se deram conta, faltava somente algumas semanas para o carnaval.

Sandra foi escolhida como rainha da escola de samba.

Ela e Luís festejaram aos gritos, naquela fronteira onde a alegria se transforma em sexo selvagem fazendo tudo tremer, inclusive a pequena loja na galeria.

Um velho vizinho da minha mãe me contou o que vem a seguir.
Não sei o quanto é verdade, mas isso não importa, porque é a fé que move as pequenas lendas de amor.

Rose não gostou nada de perder o posto de destaque para Sandra e fixou-se numa vingança.
Na noite do ensaio geral, sem dó nem pena, queimou o traje da rival, pluma por pluma.
As brasas flutuaram pelo ar.
Espelhos chamuscados, lantejoulas em pequenos pedaços de carvão.

Tudo virou cinza, apagou-se o brilho, acabou-se o sonho do carnaval.

Sandra caiu em pranto sofrido, com gemidos altos de dor.

Dona Agá aumentava o volume do rádio para não sofrer junto, e o velho Zé abandonou o copo espião.

Os lamentos de Sandra ecoavam na galeria como um som fantasmagórico, iluminados apenas pela luz verde e fria do corredor vazio.

As portas do Caveira Preta permaneceram baixas.

Não importava quem precisasse de baquetas ou cordas de violão.
A loja fechou as portas em solidariedade à tristeza de Sandra.
Tudo parecia cinza e pó.

Mas Luís tinha um plano. E é aqui onde entendemos o taxidermista do texto.

O pai de Luís era um. Foi durante toda sua vida.
A infância de Luís transcorreu entre sabão de arsênico, cianeto de potássio, bisturis e tesouras.
Luís observava o pai trabalhar horas a fio quando era criança.

O pai nunca tentou lhe passar a profissão, mas Luís, sempre atento, havia guardado dentro de si as lembranças do ritual de trabalho do pai, observado anos a fio em silêncio.

Largou Sandra nos braços calorosos da tia e sumiu.

Tinha um plano. Um grande plano.

Na manhã seguinte, para surpresa de todos, Sandra apareceu na avenida com o traje mais esplêndido que jamais se viu nos carnavais de São Paulo até os dias de hoje.

Um exuberante collant de pele de mico leão, de um dourado almiscarado brilhante.
Na cabeça um arranjo de penas de arara-azul e turaco-de-crista-violeta.
Nas botas, o lindo padrão inconfundível das manchas de onça pintada.
Nunca antes houvera uma passista tão exótica, tão linda.

Sandra foi, sem dúvida nenhuma, a maior passista que pisou na avenida naquele carnaval.
Ninguém brilhou mais que ela, ninguém.

Duas foram as manchetes no carnaval daquele ano.
Uma exaltava a beleza da mulata estampada em primeira página.
No canto inferior, em letras menores, havia também a notícia do sumiço inexplicável de vários animais do zoológico de São Paulo, alguns inclusive quase extintos.

Não sei o que aconteceu com Luís e Sandra.

Só sei que a loja do Caveira Preta continua aberta na galeria.
Cheguei a comprar minhas primeiras cordas de violão lá.
Um menino jovem me atendeu com olhos sonolentos. Alheio à lenda, não me deu muita atenção.

Em uma das paredes da loja, perdida entre discos e equipamentos de música, notei uma pluma azul brilhante, mas nunca me atrevi a perguntar quem a havia deixado lá.